14/03/18

Dawei


Dawei foi o nossa último destino em Myanmar. Pequena cidade do sudeste do país, afigurava-se como uma uma alternativa mais próxima do que Myeik ou Kawthaung para conhecer o relativamente "virgem" arquipélago de Mergui e até tínhamos encontrado um alemão residente na cidade que à data tentava organizar as primeiras saídas low cost para o arquipélago, uma vez que os preços a partir das duas últimas eram proibitivos. Além disso, fica numa das melhores zonas de praia do país e com bons acessos para Bangkok - de onde tínhamos o voo de regresso - atravessando a região de Kanchanaburi.

Infelizmente, poucos dias antes da nossa chegada o nosso mini-cruzeiro de 3 dias acabou por ser cancelado uma vez que as autoridades não emitiram a necessária licença e, sem ela, o "capitão" não quis arriscar a saída. Ficamos assim com esses dias para desfrutar de uma fantástica praia literalmente só para nós, mas já lá vamos.

Dawei fica bem fora do habitual percurso turístico de Myanmar: à data da nossa visita só era possível viajar por terra até lá (as viagens mais a sul, até Myeik e Kawthaung, só eram possíveis de avião ou de barco) e mesmo assim as viagens por estrada estavam vedadas a estrangeiros, pelo que só sobrava a opção do comboio, que é apelidado pelo autor do Seat61.com como sendo "provavelmente o comboio mais lento do mundo". Passo então a descrever a nossa "saga" para chegar a Dawei, provavelmente um dos mais cansativos mas também dos melhores dias de viagem que tivemos até hoje. Os próximos 6 parágrafos dedicam-se a uma "mera" descrição da mesma, se quiserem podem avançar esta parte mas posso-vos garantir que irão perder uma história e peras.

Sem alternativa e sabendo que apesar de lenta esta seria uma viagem inesquecível, decidimos arriscar. Assim, tentamos comprar o bilhete na véspera da viagem na estação de Mawlamyine mas fomos prontamente informados que os bilhetes só eram vendidos nas horas que precediam a partida, que estava agendada para as 4:30 da madrugada uma vez que a viagem deveria durar cerca de 16 a 18h. Disseram-nos para estar na estação pelas 3h - sem qualquer motivo para tal - e como tal decidimos aparecer pelas 3h30, uma hora antes da hora da partida. À chegada, a bilheteira ainda se encontrava encerrada mas a estação repleta de gente ora a dormir no chão, ora em amena cavaqueira enquanto tomavam o "pequeno almoço". Comboio, nem sinal dele.



Depois de nos apercebermos que o funcionário se encontrava a dormir em cima de uma mesa ao fundo da bilheteira, lá batemos no vidro sem sucesso. Perto das 4h30, lá chegou um outro funcionário que o acordou e finalmente respiramos de alívio... até que este nos informou que não havia comboio pois teria havido um acidente que o impedia de chegar! Após alguma insistência e teimosia, lá acabou por nos dizer que havia comboio pelas 9h e um "local train" pelas 7h. Optamos pelo segundo, para espanto do senhor da bilheteira, embora soubéssemos de antemão que teríamos de aguardar 2h na pequena localidade de Ye - que por acaso até queria conhecer mas não tínhamos tempo - pelo comboio das 9h, o dito comboio "normal".

Pouco depois das 7h, lá chegou o comboio e auxiliados por um jovem casal que trabalhava nas Phi Phi na Tailândia - não se já mencionei em algum diário que o povo de Myanmar é o mais generoso, genuinamente prestável e simpático que já conhecemos - lá encontramos a nossa "carruagem" que só as imagens podem ajudar a compreender:


Um vagão de mercadoria, sem janelas e com as portas ausentes, com bancos corridos de madeira e lugares marcados a giz, com uma proporção de cerca de 2 passageiros por lugar, fora as mercadorias. 





Foi uma longa mas inigualável viagem até Ye: paisagens tropicais de cortar a respiração num recanto esquecido do mundo, paragens para recolher e descarregar cerâmicas ou troncos de palmeiras e reencontros familiares:






Chegados a Ye, percorremos a rua em terra batida por entre pequenas casas improvisadas e bancas de rua e rapidamente percebemos que não estavam nada habituados a ver forasteiros. Chegados ao primeiro "café" propriamente dito, pedimos o almoço com recurso às poucas palavras que conhecíamos e fomos, como sempre, muito bem recebidos. Caminhamos até à marginal do rio - imagem de marca da localidade - tiramos algumas fotos e decidimos regressar à estação. Chegamos exactamente duas horas depois mas não partimos sem que se procedesse a uma sessão de fotos com jovens estudantes locais - fora e já dentro do comboio - que fizeram questão de nos oferecer uma espécie de gelatina embalada para a viagem, bem como algumas "guloseimas".




Este segundo comboio tinha tudo para ser um comboio normal: lugares "normais", individuais, com ventoínhas e iluminação. Digo tinha porque apesar de tudo, esta viagem foi tudo menos normal e talvez ainda mais desconfortável do que a primeira parte: as ventoínhas não funcionavam e como tal todas as janelas iam abertas para tentar atenuar o atroz calor húmido, matamos algumas carraças na parede do comboio mesmo ao nosso lado e quando anoiteceu, bem... aí foi o fim do mundo da bicharada atraída pelas luzes interiores do comboio. Como se tudo isto não bastasse, um dos muitos vendedores ambulantes que entravam e saíam do comboio para fazer negócio, decidiu apanhar uma valente bebedeira a bordo e decidiu dormir no espaço das malas mesmo por cima dos nossos lugares. 



No entanto o mais surreal - e deveras impressionante - ainda estava para vir: depois do anoitecer, vários passageiros começaram a espreitar pelas janelas fora com lanternas a pilhas, fazendo sinais luminosos ao maquinista quando queriam que este parasse. Por várias vezes o comboio parou literalmente no meio do nada e várias pessoas saíram, em tronco nú e apenas com uma lanterna na testa e mercadoria às costas, pelo meio da escuridão total e absoluta no meio da selva, sabendo que algures "ali" estaria a sua casa ou o seu destino. Foi nesta altura que percebemos que todo o nosso cansaço, toda a nossa saturação desta etapa final da nossa viagem, não era rigorosamente nada de especial e que na realidade éramos uns verdadeiros privilegiados por ali estarmos a presenciar tudo isto e prestes a terminar uma das mais espantosas viagens da nossa vida. Chegamos depois da 1h do dia seguinte à estação de Dawei e ligamos para o hotel, perto das 3h - sensivelmente 24h depois - chegamos ao nosso hotel e fomos dormir.

No nosso primeiro dia fomos a um banco trocar dinheiro (em Dawei não há turistas, logo não há - ou pelo menos não haviam - casas de câmbio nem ATMs) e conhecer dois mercado locais. As ruas de Dawei, tal como as Mawlamyine, têm ainda bons exemplares de casas de madeira do período colonial. O forte do mercado - e aquilo em que ele mais difere do resto do país - é o peixe seco. 








Junto ao rio é mesmo possível ver os vários estadios do processo, uma vez que é lá que este é descarregado e posto a secar, de forma natural, ao sol:





Depois de explorarmos o centro da cidade, decidimos negociar um tuk tuk para o dia seguinte, compramos umas cervejas e fomos descansar um pouco até ao hotel. Saímos apenas para jantar no que à data era o único "bar" da cidade e que em boa verdade, era um dos poucos restaurantes dignos desse nome.



No dia seguinte, saímos de manhã cedo para ir até à praia de Maungmagan, a cerca de 30 minutos de tuk tuk  No entanto, não encontramos o tuk tuk que haviamos "apalavrado" no dia anterior e, por nos pedirem sensivelmente o dobro, acabamos por ceder à insistência de um moto-taxi que nos levaria até lá. Resultado: umas curvas mais adiante, numa travessa mais enlameada, tivemos uma queda que felizmente não teve consequências para ninguém. Lá decidimos negociar um tuk tuk nessa zona da cidade e fomos então para Maungmagan.



Maungmagan é indescritível: uma praia completamente deserta só para nós e alguns cães vadios, um areal repleto de figuras "elaboradas" por pequenos crustáceos e uma remota aldeia piscatória numa das pontas do extenso areal, com as suas estupas construídas em cima das rochas no mar. A água - quente e com cores a oscilar entre o verde e o azul - era, a par das palmeiras, a única escapatória ao sol que a partir das 10h escaldava.







Os muitos - e estranhamente vazios - restaurantes na retaguarda serviam o melhor caranguejo que provamos em toda a nossa vida, a preços absurdamente baratos. Foram dois dias inesquecíveis, com as ilhas homónimas de fundo (que faziam parte do "mini-cruzeiro" que foi cancelado).






Quem tiver mais tempo e se quiser aventurar e alugar uma mota (que era o que teria feito hoje), pode ainda explorar as praias mais a norte e a sul, de Nabule a Tizit, respectivamente. Qualquer uma delas será certamente fantástica mas preparem-se para algumas horas de viagem em estradas em muito mau estado para qualquer uma delas (Tizit fica a 6h, se não estou em erro).

Há ainda umas fontes termais nos arredores da cidade, bem como alguns templos budistas que estranhamente não dominam esta pacata cidade.

Por fim, a travessia para a Tailândia é fácil: não há transporte público até à fronteira de Htee-khee pelo que é necessário reservar um carro privado. Partilhamos o carro com mais duas habitantes locais, paramos pelo caminho uma vez, onde finalmente experimentei a noz de areca com folha de betel, oferta de um último e uma vez mais generoso birmanês que ma ofereceu mesmo sendo a venda da mesma parte do seu negócio de beira de estrada, e atravessamos vários postos de controlo - ora de militares da junta, ora dos rebeldes que controlam regiões do estado junto à fronteira - até que chegamos à fronteira literalmente no meio do nada. Depois do posto fronteiriço de Myanmar, há uma carrinha que faz o transporte por cerca de 1 euro até ao posto Tailandês mas se quiserem é possível caminhar (a distância é curta mas sempre a subir, em terra batida). Já no lado Tailandês, há um pequeno agrupamento de 2 ou 3 restaurantes bem como uma bilheteira e paragem de autocarro.

Myanmar foi uma enorme aventura e uma experiência inesquecível e incomparável, com muitas provações físicas no final da viagem. A última ainda estava para vir: um episódio de urticária que começara na última noite mas que só se manifestaria em todo o seu esplendor depois da fronteira, levando-me ao hospital já do lado tailandês:

Muitas vezes me perguntam quanto tempo é preciso para conhecer Myanmar e a minha resposta será sempre a mesma: todo o tempo que puderes despender, pois Myanmar - tal como é actualmente - é preciosa, única, frágil mas ao mesmo tempo resiliente.



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